Com esta provocação, depois de algum tempo sem postar neste site por discordar de algumas diretrizes que vem adotando e, principalmente, por falta de tempo, cumprimento o seu jornalista editor e seus freqüentes leitores, convocando-os a refletirem sobre a frase acima a partir do que eu irei discorrer.
Já se aproxima o frio do final da tarde, as pessoas já estão tirando suas blusas de frio do guarda-roupa, um dos sinais claros de que se aproxima a maior festa do Sertão — de Luiz Gonzaga, de Elomar, de Sivuca, de Marinês e tantos outros — e, também, do Estado da Bahia: o São João.
Trata-se da maior demonstração da cultura do povo do interior, que incontestavelmente é ignorado pelos governos sucessivos. Mas, independentemente do abandono dos governos, o São João sempre foi uma festa tradicional, completa, esperada durante o ano todo, desejada por aqueles que moram fora de suas cidades de origem e que nunca foi prejudicada por falta de apoio do poder público. É bem verdade que esse apoio poderia melhorar muito as festas e os costumes que formam a cultura do povo simples do interior, mas a sua ausência nunca comprometeu a existência dessa cultura, que é um motivo de orgulho, um símbolo de identidade que só os nordestinos, em sua maioria, têm.
Esse é o São João: festa popular e tradicional que ocorre no mês de junho, onde toda uma cultura se manifesta de uma só vez, identificando aquela comunidade, aquela cultura, aquela cidade que tem um modo singular de ser, não pertencente a mais ninguém. Das comidas tradicionais ao forró legítimo, do encontro das pessoas, do calor humano das pessoas que se aproximam mais a fim de afastar o frio da serra, tudo isso constitui um patrimônio de um povo, a sua própria identidade e — por que não? — o seu ânimo de existência.
Aqui, faço as minhas críticas. Soube por grandes amizades que cultivei que a atração nas festas juninas de mais peso será a banda de pagode Parangolé, numa festa particular que acontecerá no espaço em que sempre têm ocorrido esses tipos de evento. Será realmente que o povo de Livramento tem o mínimo de respeito com a sua cidade, com seus familiares, com a sua cultura, com os seus pais ao admitirem um tipo de evento desses em plena época de São João?
Explico-me melhor, antes que surjam neste espaço conclusões equivocadas a respeito. Primeiramente, nada contra a banda Parangolé, originária das periferias de Salvador e que, a muito custo, conseguiu atingir o sucesso nacional. É criticável o fato de que esta banda toque no São João, que é uma festa que não tem conexão NENHUMA com o pagode, com o axé, com a cultura do carnaval. Então, não é esse o melhor momento para que o Parangolé venha a tocar em Livramento.
Há que se dizer, também, que não é só Livramento que está ocorrendo este tipo de absurdo, mas em todo o Estado da Bahia. Daí eu ter começado minha crítica com aquela frase um tanto provocativa (admito), mas nem por isso deixa de ser válida. Noutras cidades, já se confirma a presença de Ivete Sangalo, Chiclete Com Banana, Cheiro de Amor, dentre outras. Repito: nada contra a essas bandas e artistas, mas esta não é a festa do axé ou do pagode, mas da zabumba, do triângulo e da sanfona, do forró — e pé-de-serra, de preferência.
Observando que este fenômeno se espalhou por todo o Estado da Bahia, o Procurador do Trabalho Manoel Jorge e Silva Neto, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), de quem sou aluno, ingressou com uma liminar na 2ª Vara do Trabalho impedindo que bandas de axé e pagode tocassem no São João, alcançando o seu objetivo. Mesmo em festas particulares como esta que está para acontecer em Livramento — e que, desde já, as pessoas esperam —, deve haver respeito às ordens do poder judiciário. Essa decisão tem em si todo o acerto possível e direi o porquê. O seu fundamento não poderia ser melhor: buscou-se proteger o direito à cultura do povo, que estava sendo privado quando as prefeituras do interior e grupos da iniciativa privada começaram a contratar tais bandas famosas de axé para as suas festas juninas, desvirtuando o seu propósito e seu motivo de existir até.
É normal que surja a seguinte contestação à posição da justiça: se eu estou querendo fazer uma festa de axé, particular, em pleno São João, qual é o problema? Respondo: as decisões, as leis e tudo que venha do Estado, atualmente, não são só para tratar da relação dos indivíduos com o Estado, mas, também, dos indivíduos entre si. Noutros termos, temos que indústria do axé, insatisfeita com os lucros astronômicos que obtém no Carnaval, querem, agora, tomar o espaço de outras manifestações culturais, o que é um extremo desrespeito. Enquanto os artistas da terra são esquecidos, as empresas de axé buscam sempre mais dinheiro à custa da eliminação de uma tradição tão rica e preciosa para quem conhece, habita, mora e demora no Sertão: o São João. Ouso dizer até que é mais importante que o próprio Natal ou Ano Novo para os nordestinos mais apaixonados por sua terra, o que não é motivo para repreender, mas, sim, para valorizar.
O poder econômico, de tão forte que é, comporta-se com autoridade que, às vezes, suplanta até o próprio Estado. Vemos que empresas não querem cumprir os direitos fundamentais dos trabalhadores, dos clientes, dos assegurados pelos planos de saúde, alegando que se trata de essência do livre mercado. Agora, quem é um indivíduo para brigar contra uma empresa multinacional que contrata mais de 60 mil funcionários? Ninguém. O exército de um homem só não pode fazer muito para garantir os seus direitos, mas o Estado tem essa força e deve utilizá-la quando essas empresas do carnaval querem eliminar com o São João, com o direito à cultura do povo, para ganhar mais e mais dinheiro.
O Estado deve proteger os indivíduos, já que a relação entre pessoas sempre foi uma relação desigual. Ou seja: justamente por tamanha desigualdade, a indústria do carnaval quer eliminar a cultura de um povo apenas para ganhar dinheiro. Trata-se de um crime terrível contra as pessoas, a lei, a Constituição e a cultura. Quem pouco se importa é porque nunca teve uma cultura de verdade, mas apenas foi conduzido como ovelha por aquilo que a televisão, a internet, as redes sociais dizem o que é a ser seguido cegamente como se fosse cultura.
Digo que o povo baiano não se respeita. Posso estar errado, sim. Possivelmente, virão aqui tecer críticas pela acidez do comentário. Mas, antes, analisem. Tenho como exemplo maior o Estado de Pernambuco, terra de um povo que, primeiramente, é pernambucano e, por consequência, é brasileiro. Lá, seja em Caruaru, seja no Marco Zero no Recife, todos os pernambucanos colocam a sua cultura em primeiro lugar. Trata-se de um estado em que, dificilmente, um cantor de axé tocará no São João; não por intriga entre baianos e pernambucanos, mas por valorização à cultura. Pergunto, mais uma vez, visto o que acabo de dizer: o povo baiano se respeita?
Até no carnaval carioca, o prefeito Eduardo Paes proibiu que o axé se apresentasse lá para não prejudicar as marchinhas tradicionais, que toca há mais de meio século pelas ruas do Rio de Janeiro. E mais: a decisão do prefeito foi totalmente aplaudida pelo povo. Pergunto: o povo carioca é um povo que se respeita? Sim. Pois quem respeita sua cultura, respeita a si mesmo.
O absurdo maior é a "inversão cultural" no próprio Estado da Bahia. Sob o governo Wagner, aconteceu um imprevisto curioso: as bandas de axé foram para o interior e os artistas do interior vieram para a capital na festa do São João. Assim, no Pelourinho, já tocaram em festas juninas passadas Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Dominguinhos, Elba Ramalho, além da valorização dos artistas de forró locais, o que foi uma verdadeira revolução da forma como o governo trata a sua cultura. Em nada o São João de Salvador — que tem tradição fraquíssima se comparado ao de Livramento, por exemplo — perde para de outras cidades tradicionais do Nordeste. Há a época do carnaval e a época do São João, algo que está sendo considerado pelo poder público e pelos particulares. Ou seja: até Salvador, capital da Bahia e do axé, sabe se respeitar.
Agora, feitas tais considerações, proponho ao leitor as seguintes considerações a serem feitas: como vai se comportar o povo de Livramento em relação a sua cultura? Vão respeitá-la, ficarão omissos ou vão se entregar à cultura de outro lugar que nada tem a ver com os hábitos e costumes desta cidade do Sertão? Vou direto ao ponto: o povo de Livramento saberá se respeitar?
Acharia de bom grado que o Ministério Público se manifestasse a respeito dessa festa do Parangolé e até das possíveis contratações pela prefeitura municipal dos artistas que irão tocar no São João. Há entendimento farto sobre o tema, precedentes jurídicos que muito bem poderiam proteger o tradicional S. João da Rua do Areão, da Praça Principal e dos distritos. Cabe, agora, ver como as pessoas se comportarão a partir desta provocação que eu faço — que, confesso, já está longa por demais.
Aqui, só duas conclusões são admitidas. Quem se respeita, vai se mobilizar de várias formas — entrar em contato com o Ministério Público, com a Prefeitura, com a Câmara de Vereadores, pelas críticas na internet — para valorizar a cultura máxima e admirável do São João, do velho forró pé-de-serra, das barracas de comidas típicas, das fogueiras, das bebidas, do evento sagrado e do profano, do contato das pessoas e repelir a possibilidade de tocar axé no São João com dinheiro público e até privado. Quem se respeita valoriza a sua cultura e não deixa que terceiros simplesmente acabem com ela.
Mas quem não se respeita, primeiramente, vai se omitir, não ter opinião a respeito, ficar inerte, o que é um grande prejuízo social, moral, individual e intelectual. Depois, há aqueles que não têm capacidade suficiente para enxergar o valor de sua cultura e, por isso, trazem a cultura de fora para tomar o espaço de outra que já tem centenas de anos. Quem não respeita a sua cultura não tem identidade, muito menos capacidade de crítica que tenha o mínimo de seriedade.
E, a partir da postura que a cidade de Livramento de Nossa Senhora tomar em relação às bandas que tocarão no São João, teremos a oportunidade de verificar se, realmente, o povo livramentense é um povo que não se respeita ou — aquela que torço sinceramente para que ocorra — se é uma exceção da regra que expus no início deste texto: "o povo baiano é um povo que não se respeita".
Por fim, agradeço o espaço que sempre tive aqui, aos leitores e sua paciência e, desde já, a partir do impacto deste texto e de tantos outros que poderão surgir, já começarei a tentar chegar a uma conclusão sobre aquela nossa primeira frase do texto. E, sinceramente, espero que ela seja falsa daqui em diante, tanto em Livramento quanto no Estado da Bahia.
Viva o São João!
Viva o Grande Estado do Sertão!