Artigo – 19.05.2013

O R. Despacho Parte II

(Ou: O Precatório Que Foi Sem Nunca Ter Sido)

Jorge de Piatã (*)

E por falar nas fobias causadas por efeito dos rr. despachos, outro dia fiquei em estado de choque ao ser intimado, via DPJ de um traulitante e por que não dizer fulminante r. despacho firmado por um meritíssimo juiz encarregado do Núcleo de Precatórios do Egrégio TJ. Com a estranha sensação de que me saía fumaça pelos ouvidos, o r. ato me fez entender ainda mais o sentimento de angústia daquele personagem kafkiano que de repente se vê preso sem saber o motivo e que, à falta de respostas a todas as suas perguntas possíveis e imagináveis, percebe que está ultrapassando os limites que separam a sanidade da loucura. De fato, ao menos enquanto em estado de choque eu não conseguia atinar de onde vinha, se deste ou do outro mundo, da parte de quem, porque vinha, e nem para onde ia o erríssimo despacho!

Ressalvo que a rememoração que ora faço do r. despacho não é a da sua exata transcrição. É apenas uma tentativa de reconstituição do que me restou traumaticamente fixado na memória. Tanto que nunca mais tive coragem de reler o tal r. despacho e, muito menos, de reproduzi-lo na íntegra. Enfim, só me lembro de que Sua Excelência, o MM Juiz, em meu total desfavor decretava do alto da sua incontestável autoridade mais ou menos o seguinte: Frustradas todas as tentativas de incluir o presente precatório na pauta de negociações deste Núcleo em razão do absoluto desinteresse demonstrado pelo advogado dos credores não resta alternativa senão a do seu arquivamento, assinalando-se que atitudes como essas é que revelam quem são os verdadeiros responsáveis pela tão decantada morosidade do Judiciário.

Fiquei perplexo. Euzinho, meu?!... Responsável pela... o quê?!... E aflito, sentindo no couro os efeitos adversos do acachapante e r. despacho, passei – em ingente esforço – a refletir e a pesquisar. Primeiro, sempre com a cabeça zoando, examinei cuidadosamente os arquivos documentais de que eu dispunha, referentes às três últimas décadas, e nada localizei. Depois, sempre recuando no tempo, continuei a procurar pelos métodos convencionais e nada! Com isso, só me restava buscar o socorro da paranormalidade. Aí então eu me submeti por conta própria ao processo de regressão de memória. E assim, mergulhando no meu inconsciente profundo, em transe, contando para tanto com a infalível inspiração do Tio Jerônimo (um dos meus espíritos protetores) desci ao porão do meu escritório e após causar a debandada dos morcegos de plantão bati os olhos em umas caixas velhas de papelão e me lembrei de que ali estavam os meus arquivos mais remotos, que chamo de pré-históricos. Ao abrir cada uma daquelas antigas caixas, acordava quintilhões de ácaros e estes assustados espalhavam pelo ambiente todo o poeirame que se acumulara desde o século passado. Acredito até que só sobrevivi àquele sufocante abafamento edemadegloteano por estar até hoje espirrando e expelindo churros de poeira recheados daqueles bem cevados e ferozes ácaros.

E foi nessas condições que, de repente – eureca! Acabava finalmente de encarar a velha pasta que guardava os não menos velhos papéis relacionados ao imemorial processo. Lá estavam as cópias da inicial de uma ação plúrima movida em 1971, portanto há exatos 42 anos, contra o Município de Malhada de Pedras, da r. sentença, do r. acórdão que a confirmou, do r. precatório expedido e enviado ao Egrégio TJBA em 1977 e, finalmente, da petição do acordo celebrado e homologado na Comarca de Brumado em 1980.

Nesta breve reconstituição histórica fica patente, por conseguinte, que o relutante e r. precatório teve entrada no Egrégio Tribunal há 36 anos. E que, em 1980, quando a sorumbática peça requisitória já contava três anos jazendo esquecida in mortorium nas prateleiras forenses da capital, as partes celebravam aqui no interior o acordo que naquele mesmo ano receberia o r. despacho homologatório. Enfim, tudo resolvido. Aqui. Mas, lá, não!

Tanto que, para meu espanto geral, já transcorridas quase quatro décadas de silêncio, eis que o relutante e lazarento r. precatório vem de ser levantado do necrotério forense por força do portentoso e erríssimo despacho que, no início deste modesto opúsculo, meio descadeirado e zonzo, acho que reproduzi, ao menos mais ou menos.

Ah! Quero registrar ainda que, dentre os oito autores daquela ação, meus constituintes, só consegui ter notícias da professora que então os liderava, mas que, lamentavelmente, já falecera há alguns anos. Dos demais não tive uma notícia sequer. E, aliás, se eles estiverem vivos como espero, já estarão todos centenários e, por conseguinte, transgredindo temerariamente o índice médio de vida dos brasileiros estabelecido para enquadramento, de quem queira se aposentar, no famigerado fator previdenciário. E, para quem não sabe, o fator previdenciário, consolidado no início da dinastia petista, poderia ser mais carinhosamente chamado de fator pé-na-cova. Para opositor nenhum botar defeito. E se você é contra, muito simples: morra logo para não ser enquadrado!

Bem, não sei se é excesso de frouxura ou de paranóia – ou de ambas – da parte deste modesto causídico, mas ultimamente rr. despachos como esse me requentam impiedosamente a moleira. Mesmo assim, com a alma espremida no chão, primeiro intentei minimizar minha culpa buscando, pela ordem, identificar o(s) culpado(s) pela malsinada morosidade do r. precatório. Na primeira linha de raciocínio fui obrigado a isentar de culpa os vv. magistrados que, ao longo de quatro décadas, pareciam ter escondido sua preguiça atrás da r. toga. Afinal, segundo o v. ministro, magistrados não escondem nada atrás da r. toga. Nem sua eventual condição de rr. bandidos. E se isso não escondem porque haveriam de esconder meras crises letárgicas de preguiça? Sem esperar resposta, passando a outra linha de raciocínio, me indaguei: Teria sido coisa do outro mundo? Seria obra de advogados que desencarnados em estado de preguiça crônica estariam, em irresistível processo obsessivo, induzindo os vv. magistrados a não colocarem suas vv. mãos no r. precatório? Ou seriam mm. juízes desencarnados os obsessores dos seus vv. colegas encarnados? Ops! Nesta hipótese, nem pensar! Se eles praticam o espírito de corpo aqui e no aquém certamente também o fazem no além! Enfim, pontofinalizando os meus temerários esforços de busca de outro(s) culpado(s), extremamente exausto, eu me declaro vencido! Então, não achando outro(s), sobrei! Mea culpa mea maxima culpa! Certíssimo está o MM Juiz do r. precatório! Sou mesmo o único culpado pela tão decantada morosidade da Justiça! Não o fosse, eu deveria, mesmo daqui do interior, estar atento lá na capital à tramitação do processo embora estando este empacado desde meados do século passado. Deveria eu ao longo dos últimos trinta anos haver exercitado atenta e respeitosamente o meu jus esperneandi, encaminhando pelo menos umas trinta rr. petições, uma ao menos a cada ano, reclamando sempre respeitosamente o necessário arquivamento do r. precatório que, embora morto, teimava (ou teima) insepulto aguardando um r. despacho obituário que pudesse ou possa lançá-lo definitivamente nas profundas de uma tumba forense, assegurando assim o seu repouso pacífico e eterno.

Foi, portanto, a minha indesculpável e quase meio-secular conduta omissiva, de indolência, que certamente contaminou e induziu Suas Excelências a que delongassem também por quase meio século – ao contrário do meu – o seu desculpável e mui r. sono dos justos!

Enfim, bem merecida a r. captis diminutio maxima aplicada de forma edificante e exemplar no lombo deste modesto advogado que, além dos defeitos do ilustre anonimato e de ser contumaz tabaréu, acabou sendo flagrado como responsável pela morosidade da Justiça por haver praticado ao longo de quase meio século a baianíssima arte do bem dormir, mesmo com a salutar ressalva de que dormir é bom mas acordar dá um traaaaabaaaaalho ...!

Enfim, ao tempo em que peço desculpas pela culpa apontada no r. despacho do r. precatório, assumo as demais que me cabem pela falta ou demora de rr. despachos em feitos outros, por minha negligência postulacional decorrente sempre do excesso de palha que puxei e ainda puxo sob o pretexto de ser baiano. Tanto que é preciso nunca esquecer de que a norma imperativa que nega socorro aos que dormem por necessidade nega também aos que dormem por gosto ou por baianidade!

Ah! Os MMºs. Juízes que presidiram o r. precatório nunca – nunca mesmo – oficiaram pedindo qualquer informação ao MMº Juízo de origem. Mas, os informes necessários, acompanhados das minhas velhas cópias, e complementados com novas cópias do processo de origem, há pouco mais de um ano foram por mim encaminhados aos autos do r. precatório. Com isso, roguei, sempre respeitosamente, o seu arquivamento.

Soube que foi arquivado. Mas, nada foi publicado.

Mesmo assim, rogando às Suas Excelências que interessar possam todas as máximas vênias idealizadas pelo mais solícito e solicitante dos advogados, sempre muito respeitosamente dou por encerrada a r. história do r. precatório que foi sem nunca ter sido!

Vixe!

Para ler a Parte I, acesse: http://www.mandacarudaserra.com.br/noticias/2013/jorge_piata.html

(Jorge Soares de Oliveira, Jorge de Piatã, é bacharel em Direito pela UFBA, turma de 1969, inscrito na OAB-BA sob nº 3.401, com escritório na cidade de Brumado-BA, atuando, também, em Livramento de Nossa Senhora, Rio de Contas, Vitória da Conquista e Salvador)