Natal de Zezé – 12.12.2015

 

Meu Pé de Laranja Lima (*)

 

(...)

Saí em desabalada carreira para a venda do Miséria e Fome, chacoalhando a

caixa de engraxate.

Entrei de furacão, com medo que ele já fosse fechar.

— O senhor tem ainda daquele cigarro caro? Ele apanhou duas carteiras

quando viu o dinheiro na palma de minha mão.

— Isto não é para você, é, Zezé?

Uma voz por trás falou:

— Que ideia! Um pequeno desse tamanho!

Sem se virar ele contestou.

— Porque você não conhece esse freguês. Esse danado é capaz de tudo.

— É para Papai.

Sentia uma felicidade enorme rolando as carteiras na palma da mão.

— Essa ou essa?

— Você é quem sabe.

— Passei o dia trabalhando para comprar este presente de Natal para Papai.

— Verdade, Zezé? E o que ele te deu?

— Nada, coitado. Ele está ainda desempregado, o senhor sabe.

Ele ficou emocionado e ninguém falou no bar.

— Qual o senhor gostava mais se fosse o senhor?

— As duas são lindas. E qualquer pai gostaria de receber um presente desse

jeito.

— O senhor me embrulha essa, por favor.

Ele embrulhou mas estava meio esquisito quando me deu o pacotinho.

Parecia querer dizer uma coisa e não conseguia.

Dei o dinheiro e sorri.

— Obrigado, Zezé.

— Boas-festas para o senhor!...

Corri de novo até em casa.

A noite tinha chegado também. Havia a luz acesa do lampião apenas na

cozinha. Todos tinham saído, mas papai estava sentado na mesa olhando o vazio da parede. Apoiava o rosto na palma da mão e o cotovelo na mesa.

— Papai.

— O que é, meu filho?

Não havia rancor nenhum em sua voz.

— Onde você andou o dia todo?

Mostrei a caixa de engraxar.

Coloquei a caixa no chão e meti a mão no bolso tirando o pacotinho.

— Veja, Papai, comprei uma coisa linda para o senhor.

Ele sorriu compreendendo o quanto custara aquilo.

— O senhor gosta? Era a mais bonita.

Ele abriu a carteira e cheirou o fumo, sorrindo, mas não conseguia dizer

nada.

— Fume um, Papai.

Fui até ao fogão apanhar um fósforo. Risquei um e aproximei do cigarro em

sua boca.

Me afastei para assistir a sua primeira tragada. E foi me dando uma coisa.

Joguei o fósforo apagado no chão. E senti que estava estourando. Rebentando todo

por dentro. Rebentando aquela dor tão grande que passara o dia ameaçando.

Olhei Papai. O seu rosto barbado, os seus olhos.

Só pude falar.

— Papai... Papai...

E a voz foi sendo consumida pelas lágrimas e soluços. Ele abriu os braços e

estreitou-me ternamente.

— Não chore, meu filho. Você vai ter muito que chorar pela vida, se

continuar um menino assim tão emotivo...

— Eu não queria, Papai... Eu não queria dizer... aquilo.

— Eu sei. Eu sei. Não fiquei zangado porque no fundo você tinha razão.

Me embalou, um pouco mais.

Depois levantou o meu rosto e enxugou-o com o pano de prato que estava

jogado perto.

— Assim é melhor.

Suspendi as minhas mãos e alisei o seu rosto. Passei os dedos de leve sobre

os seus olhos tentando colocá-los no lugar, sem aquela tela grande. Tinha medo que se não o fizesse, aqueles olhos iriam me seguir à vida inteira.

— Vamos acabar o meu cigarro.

Ainda com a voz tolhida de emoção gaguejei.

— Sabe, Papai, quando o senhor quiser me bater nunca mais eu vou

reclamar... Pode me bater mesmo...

— Está bem. Está bem, Zezé.

Depositou a mim e o resto dos meus soluços no chão. Apanhou no armário

um prato.

— Glória guardou um pouco de salada de frutas para você.

Eu não conseguia engolir. Ele sentou-se, foi levando pequenas colheradas à

minha boca.

— Agora passou, não passou, meu filho?

Fiz que sim com a cabeça mas as primeiras colheres entravam na boca com

gosto salgado. O resto do meu choro que custava a passar.

(...)

* Obra de José Mauro de Vasconcelos