Entrevista:

Cônego Pedro Carlos Cruz Santos

O Cônego Pedro Cruz dirigiu a celebração festiva pelo seus 25 anos de ordenação sacerdotal

Em sua passagem por Livramento, para onde veio de férias e foi homenageado pelo transcurso das suas Bodas de Prata de ordenação sacerdotal, o cônego Pedro Carlos Cruz Santos, da paróquia de Santa Rosa de Viterbo, pertencente à Arquidiocese de Ribeirão Preto (SP), livramentense, nascido no bairro Valério, recebeu a reportagem de O Mandacaru, em 09.01.2011, na casa de sua mãe, D. Zezinha, quando, gentilmente, nos concedeu a seguinte entrevista, da qual participaram o jornalista Raimundo Marinho e a professora Márcia Oliveira:

Quando foi despertada sua vocação sacerdotal e por quê?

Foi desde criança e o que despertou foram a fé, o exemplo e o testemunho da minha tia Gildete, da minha mãe, da minha avó. É uma história muito rica. Na época, eu tinha vergonha de falar, por ser de uma família simples, humilde. Como eu poderia ser padre, de que jeito? Naquele tempo, ser padre ou ser alguém nessa dimensão tinha de ter condição financeira. Eu tinha vergonha, mas minha tia, minha mãe, meus irmãos, meus tios, todos eram de igreja. Ainda me lembro, quando, aqui nesta sala, minha mãe me perguntou se eu queria ir para o seminário para fugir dos problemas e das dificuldades da vida e eu respondi que não, dizendo “hoje, vocês não entendem, mas, no futuro, entenderão”.

Dificuldades enfrentadas?

Foram tantas, tantas! A primeira foi vencer o preconceito. O nordestino, em são Paulo, anos 1979, 1980 e 1981, enfrentava tempos difíceis. Se não fosse essa minha mãe, minha tia e os amigos, eu não teria conseguido. Hoje, percebo como Deus foi generoso comigo. Pelo apoio que recebia, tinha de continuar. Por mais que eu quisesse desistir, não poderia, porque a graça de Deus vinha muito, vinha de uma forma inconcebida.

Era dificuldade material, a distância, o que era?

O material, a distância, tudo isso. Era difícil. Às vezes, eu não podia escrever uma carta para casa, porque não tinha como por um selo na carta, não podia pagar.

E o exercício da vocação em si, é penoso?

Não. É degustante, como diz Rubem Alves, você ir vivendo toda dimensão da formação sacerdotal. É bonito, não é penoso. Penoso, muitas vezes, eram as dificuldades para investir em você mesmo, avançar mais, ampliar as descobertas. No período de formação, eu fiz um ano de teatro, fiz música clássica, participei de coral, mas sinto que poderia ter avançado mais. No entanto, as dificuldades me impediram.

O momento mais difícil dessa caminhada?

Foi a saída da minha terra. É difícil deixar sua terra, suas raízes, sua identidade, sua cultura. Porém, acima dessas dificuldades, tinha um objetivo e um ideal. Foi difícil, foi sofrido. A saudade! Tinha dia que eu punha as coisas sobre a cama para vir embora. Ao mesmo tempo, nessas horas, lembrava-me de padre Sinval, padre Zé Dias e tantos outros, que conseguiram. Por que eu não conseguiria? De outro lado, a consciência me dizia, também, que eu não tinha nenhum centavo para vir embora. Esses foram momentos muito difíceis.

Nos momentos críticos, como era a conversa com Deus?

A experiência de Deus, a minha relação com ele, foram magníficas em minha vida e continuam sendo. Foram experiências, assim, muito personificadas, tête-à-tête. Eu não tinha um Deus fantasia, tinha um Deus tête-à-tête. Eu dizia para Ele: “se você quer, se você me exige, se você me pediu, se você me tirou, tem de me amparar”. Era um conversa gostosa e aí eu voltava reabastecido. Por muitas vezes, vivi noites acordado e, não raro às três horas da manhã, me encontrava dentro de uma igreja, nas paróquias por onde passei, gritando para Deus. E posso dizer que, em toda minha vida, sempre houve solução para aquilo que eu buscava, que eu necessitava.

O diácono Pedro Cruz, quando era ordenado padre, na catedral de Livramento

Nessa hora, o que vibra mais o corpo ou o espírito?

Não consigo fazer uma dicotomia entre corpo e espírito. Eu acho que corpo e espírito é uma conjuntura. Tudo anda junto, a espiritualidade e a ansiedade do coração. Não consigo fazer a separação entre corpo e espírito, corpo e alma.

A maior alegria?

São tantas! Primeiro, foi passar por todas essas experiências, seguindo-se o dia em que meu bispo disse “eu vou te ordenar padre com muita alegria” e eu respondi “não vou decepcionar a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Esse foi o dia mais alegre da minha vida, quando foi definida minha ordenação: 14 de maio de 1985. Segundo, foram todas as conquistas de relacionamento, de convivência, de projetos realizados, as acolhidas que tive. Exemplo disso, foi a vinda de 80 pessoas de São Paulo, somente para organizar e participar das comemorações, em Livramento, das minhas Bodas de Prata como sacerdote. E não veio mais porque foi impossível, não tinha condição de vir mais. Minha maior alegria, hoje, é estar com essas pessoas.

Pedro Cruz recebendo o diaconato, em Ribeirão Preto. Cônego Pedro, descontraído, com a mãe D. Zezinha

Como é o caminho de Deus?

O caminho de Deus é um caminho de luz, de muita luz. Essa luz vem de muitas manifestações, de muitas maneiras. Não é fantasia, não é alegoria. É um caminho que vai se manifestando em muitas situações e respostas. No meu caso específico, por exemplo, são 25 anos de vida sacerdotal, durante os quais vivi experiências que passaríamos uma semana aqui para relatar. Experiências em todos os campos: social, político, econômico e religioso. É um caminho que eu faria tudo de novo.

A Igreja de Deus, hoje, está no caminho certo?

A Igreja de Deus, que é a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, nunca esteve no caminho errado. Primeiro, seu Mestre, seu Modelo é Jesus Cristo, que é caminho, verdade e vida. Ela nunca esteve fora desse caminho, apesar dos momentos de altos e baixos que sempre teve. E nós não podemos esquecer que ela sempre foi conduzida e dirigida por homens, que não são perfeitos.

É mais fácil aceitar o convite de Jesus hoje, que na época de João Batista?

Eu acredito que, naquele momento, nós vivíamos num tempo secular sacralizado. Hoje, vivemos numa época secularizada, globalizada, em todas as dimensões de uma tecnologia de ponta, avançada, graças a Deus, na ciência e na política. Eu acho que cada desafio depende do seu momento. O que muda é que, naquele momento, o mundo era sacralizado e hoje é mais secularizado. E é dentro dessa conjuntura que você tem que dar uma resposta, para seu tempo e sua história.

Como Cristo seria recebido se voltasse ao mundo, hoje?

Da mesma forma.

Seria, novamente, crucificado?

Crucificado, como é crucificado no dia-a-dia. Eu não posso desassociar. Na forma sacralizada de ontem e na forma secularizada de hoje não é diferente. A indiferença e o ceticismo não mudaram. Hoje, há mais disfarces. Talvez Jesus não fosse crucificado da maneira daquele tempo, mas pela tecnologia do nosso tempo.

A proliferação de igrejas, hoje, ajuda ou atrapalha a mensagem de Cristo?

Ajuda. São opções, escolhas. Eu sou católico cristão, por valores, por bases, por instrução e as minhas opções teológicas, no dia-a-dia, são cada vez mais claras. As denominações religiosas, as facções ideológicas não mudam a minha opção, mas esclarecem muito mais aquilo que são o real caminho, a verdade e a vida.

O Estado laico está muito distante de Deus?

Não. A laicidade, hoje, os ministérios da Igreja são ricos. A partir do Vaticano II, em Medellín, Puebla e hoje o Documento de Aparecida, a Igreja se abriu numa dimensão, que é rica, que realmente deixa cada vez mais clara que ela sempre foi inspirada na ação de Deus e do Espírito Ressuscitado. Hoje, os ministérios da Igreja, os movimentos pastorais, os leigos, os conselhos de pastoral são cada vez mais integrados.

Refiro-me à laicidade do Estado, que não resolve os problemas sociais, devido à ineficiência administrativa. Como é que a Igreja ver isso?

A Igreja, hoje, não vive mais atrelada ao Estado. O protagonismo do leigo na Igreja é uma coisa, mas a dimensão da relação da Igreja com o Estado não existe mais. A Igreja é independente.

Mas o Estado hoje é uma dificuldade?

Não, porque a igreja é independente. Ela independe do poder político, social e econômico. É muito claro para nós, a Igreja sempre pede o apoio da ciência, da tecnologia, da política, para dinamizar muito mais essa dimensão do reino. A Igreja coopera e pede. O que ela não aceita é aquilo que, muitas vezes, se exclusivisa em forma de privilégios.

Algum arrependimento?

Não. A única e mais profunda vontade é ser da terra.

De voltar para Livramento...

Sim. Existe dificuldade? Não. Existe impedimento? Não. Foram criados pilares, 25 anos, uma história.

Existe diferença entre o homem Pedro e o cônego Pedro?

Eu não posso fazer diferença entre o cônego Pedro e o homem Pedro, que tem uma família, que tem uma história. Eu não faço essa diferença, porque você não pode jogar fora os seus valores.

Qual a diferença entre padre e cônego?

Cônego é só um título de reconhecimento por esses anos de caminhada, de prestação de serviços, com dedicação, com amor, com doação à Igreja de Jesus Cristo, na Arquidiocese de Ribeirão Preto (São Paulo). O cônego continua sendo padre. É só um título dado pelo arcebispo pelos anos de trabalho.

O que é necessário para seguir Jesus?

Coragem, opção clara, disposição e vontade. Tem de ser firme ao dizer “eu quero”. Precisa responder com clareza para aquilo que Deus te chama a cada instante, a cada momento, para se realizar como pessoa. Sabemos das dificuldades desse mundo, desse país e se a gente não tiver decisões e, acima de tudo, determinação, as coisas é que vão determinar o nosso destino, impedindo que determinemos nossa caminhada.

Qual foi a tentação mais difícil de resistir?

Foi quando me propuseram deixar tudo para ser político. Mas não tive dificuldade de superar. Propostas, por exemplo, para ser prefeito, ser candidato, foram muitas, mas não tive qualquer dificuldade para dizer não. Vário partidos políticos já me procuraram para ser candidato, mas sempre respondi não, pois não é minha vocação. Acho que para tudo na vida tem que se ter vocação. Tem que se ter vocação para ser jornalista, para ser casado, para ser político, porque senão você só vai prejudicar a coletividade.

(Prof.ª Márcia Oliveira) Eu queria pedir ao senhor uma palavra para a juventude de Livramento. Juventude que gosta de festa e está, de certo modo, vivendo essas coisas do dia-a-dia, nesse mundo, como eles dizem, de muita alegria, muita bebida, muitas ofertas...

A minha palavra para a juventude desta terra querida de Livramento de Nossa Senhora, nesse país, nesse mundo, é muito simples: cadê aquela juventude que, ontem, reivindicava, cadê as caras pintadas, cadê os jovens com sonhos e ideais? A segunda questão é: gente, precisamos ultrapassar o provisório, o transitório. Precisamos acreditar, e eu acredito, num futuro melhor, num país melhor, num mundo melhor. Só que eu tenho que fazer minha parte. Porque esse mundo melhor, essa vida melhor, esse sonho de, realmente, viver numa sociedade mais humana, mais fraterna, eu não posso esperar que aconteça sem a minha cooperação. A Igreja acredita que essa juventude de hoje vai redescobrir seu valor e abraçar sua vocação. Vocês são o futuro, o nosso amanhã. E se vocês não fizerem história, ninguém vai fazer por vocês nem por nós.

Algo que o senhor queira complementar?

Há tantas coisas que eu gostaria de falar, sobre essa história de 33 anos, incluindo a vida no seminário. Falar sobre minha família, que foi meu apoio, meu abrigo e meu refúgio. Meus irmãos são meus amigos. Quando eu venho de férias, são 15 dias de festa. O que todos fizeram nesta festa das bodas de prata, que vocês puderam ver, foi surpreendente. O que eu gostaria de dizer é muito obrigado por tudo, a todos que vieram de São Paulo, à minha família, minha mãe, meus irmãos, o povo de Livramento, a Diocese, D. Armando, padre Ademário. Foram todas essas pessoas que fizeram com que esta festa fosse a mais bonita de todos os meus 25 anos de sacerdócio.

(profa. Márcia Oliveira) Agora, D. Zezinha [mãe do cônego Pedro] vai falar... Pode contar o que a senhora ia contar...

Minha filha, ele não contou tudo. O sofrimento dele foi tanto! Hoje é mais fácil. Foi formado um grupo vocacional, em que todos ajudam um pouquinho, até eu faço parte, para juntar algum dinheiro para ajudar os seminaristas lá fora. No tempo dele, não teve isso.

Quando estava no seminário, ele falava com a gente no rádio. O padre Vitor [da Rádio Aparecida] dizia “agora vai conversar um baiano de Livramento”. A gente conversava pelo rádio, porque não podia escrever carta.

Certa vez, ele adoeceu e os médicos, devido às necessidades do Seminário, disseram “você vai sair e vai se tratar”. Mas ele disse “seja o que Deus quiser, eu não vou sair, eu fico e vou caçar um jeito de tratar da saúde”.

Quando era época de férias, ele dizia “mamãe, eu tô de férias, mas não tenho dinheiro para ir”. Aqui, você sabe, eu plantava roça. Eu e Gildete [tia do cônego] plantávamos um pedacinho de roça, aqui, cuja renda era para Pedro vim passar as férias com a gente. Na hora de voltar, a gente reunia e dava o dinheiro da passagem.

Nas férias, aqui, ele ajudava a fazer tudo: cortava arroz, arrancava feijão. Esse menino não sofreu pouco não, minha filha, e nada fiz para ele desistir. Até a alimentação dele foi curta, que ele enfraqueceu. Mas eu não gosto de relembrar não, dói o coração.

E hoje, nas bodas de prata sacerdotal dele, como a senhora se sente?

Cê sabe, tudo é destino. Tenho prazer. Cê acredita, hoje, considero o povo de Santa Rosa [atual paróquia do filho, em São Paulo] como uma família. Como cê vê, montar um bucado de gente num ônibus, só pra vim ajudar a gente a comemorar aqui!

Ele me disse “mãe, o pessoal tá querendo vim comemorar meus 25 anos de padre aqui, mas eu não tô querendo”. Eu perguntei “por que, meu filho” e ele disse “tenho medo mamãe, deles ver a fraqueza da família da gente”. Então, eu disse “não tem perigo, não, Deus dá jeito pra tudo”.

Ai, eu falei com o Marcelo, que dirigiu tudo, “ô Marcelo, Pedro tá com medo de vir pra aqui, medo do pessoal daí notar a fraqueza do povo daqui, tá com medo de vocês chegarem aqui e ver a fraqueza da família, pensando que aqui tem um rei e uma rainha e um reinado”.

Então, ele falou “se ele não quiser ir, nós vamos sozinhos”. E assim, minha filha, Deus ajudou que, assim que passou a festa de Nossa Senhora Aparecida, começaram os preparativos. Deu tudo certo e todos saíram daqui chorando.