Advogado
Agressões à natureza quase sempre fazem parte da rotina de países atrasados. Ainda mais quando não reparadas ou não coibidas, ao ponto de estimular novas ameaças.
Pois bem, embora eu esteja falando de coisas óbvias, a indignação me leva a fazer algumas reflexões como forma de desabafo. E para tanto, considerando que todo rio que já morreu, que está morrendo ou está sendo ameaçado tem uma história bem parecida, passo a contar a que segue, tendo como protagonista você, um senhor empresário do agronegócio, que para colher fortunas de imediato pouco se importa em semear a miséria do futuro. E como isso ocorre? Ao aventar respostas, ouso intercalar entre parênteses algumas verdades que você (o dito empresário), evidentemente nunca assume (repiso que estou falando de coisas óbvias).
Primeiro, você, empresário (que posa de) grande empreendedor no setor do agronegócio, alia-se a certos políticos (clientelistas, não muito afeitos à ética, o que pouco importa porque essa coisa está ficando cada vez mais fora de moda) que atuam na região (reduto eleitoral) e sai à procura (à caça) do rio dos seus sonhos de riqueza (marcado para morrer). É a aliança perfeita (tesconjuro!) para fomentar o progresso (seu, da sua sede insaciável de lucro e de poder).
Assim, tendo localizado o rio (a caça), posto daí em diante sob sua mira, você chega às proximidades da sua nascente, munido das licenças (assaz licenciosas) necessárias. E portando pesadas máquinas (armas) você demarca a área (marca o território) do seu projeto de desmatamento (de agronegócio ou mineração). Logo, em sucessivas e eficientes arrancadas (sucessivos e fulminantes ataques), seus poderosos tratores e motosserras (armas pesadas), sem qualquer empecilho (reação), passam a desbravar (arrasar) as áreas ribeirinhas, desmatando (ceifando) suas matas e nivelando toda a paisagem local (ecossistema) ao rés do chão, para finalmente fincar os alicerces da concretagem (bruta e indiferente) das barragens com que você finalmente conseguirá represar (aprisionar) as águas do rio (indefeso).
Desse modo, você concretizou (concretou) o marco inicial do seu ambicioso empreendimento (você matou o rio ou o deixou entre a vida e a morte). Todavia, considerando que é isso mesmo que você quer, o que fazer então para assegurar a continuidade e a ampliação da sua obra? (o que fazer para assegurar que o coitado não se restabeleça ou ressuscite?)
Muito simples: Deixe que continuem felizes, com as votações que você, empresário (grande matador) financia, seus prepostos (outros predadores) eleitos, quais sejam, o prefeito, o vereador, o deputado, o senador e quiçá até o governador e o presidente. E deixe que eles, no perpassar de ações e omissões ditadas pelas necessidades (conveniências) de cada momento, consigam convencer os seus eleitores a que permaneçam também sempre felizes. E não só felizes mas esperançosos, embalados (iludidos) como sempre pelas (habituais) promessas de campanha. Sendo as mais comuns as que são lançadas no comércio varejista do voto, todas envolvendo bens e serviços paliativos. E as mais seletas, a do mercado atacadista do voto, reservada aos eleitores (cabos) mais apetrechados de votos, a quem são prometidas as nomeações, os “redas” e as contratações oportunistas, imorais e/ou criminosas (sem licitação e sem concurso, por exemplo). E as promessas que poderiam ser sérias e possíveis, perdem-se no imenso cenário eleitoral da prestidigitação e do engodo. Onde tudo acontece e se repete sem aquela preocupação sobre quem vai adoecer ou morrer primeiro... se eu, tu, ele, nós, vós, eles ou o rio.
Claro, quanto a tu e a vós, empresários do agro(tóxico)negócio e políticos clientelistas (exterminadores do futuro) a preocupação possivelmente é nenhuma pelo que se percebe na sua conduta tranquila (fria) e firme (arrogante), sempre a demonstrar (ostentar) a certeza que tendes de que sois poderosos e imortais! E vossa certeza é mais que certa porque não bebeis da água que envenenais e, dos frutos que plantais, só comeis os lucros!
Voltando a falar novamente só pela minha modesta ótica, como lhes disse no começo, o descobrimento dos rios por certos empresários pode ser o início do seu fim. Tanto que a história deles é bem parecida com a dos antigos bandeirantes. Só que, ao invés de começar matando primeiro os índios, como eles faziam, exterminando-os com espadas e arcabuzes para conquistar suas terras e rios, o bandeirante atual primeiro toma de assalto as terras, para depois – com o seu arsenal de blindados agrícolas e de armas químicas de reconhecido efeito letal – massacrar os rios, a flora, a fauna, os ribeirinhos e os demais viventes.
Postas estas preocupações lógicas com o nascimento, a vida e a morte dos rios em geral, na perspectiva de um futuro que periga ficar ainda mais sombrio, retrocedo agora às lembranças que guardo da nossa infância, dos tempos quando em companhia do meu avô e dos meus primos, vivenciávamos nossas andanças às margens de duas nascentes de um mesmo rio, de águas cristalinas, margeadas de um verde entremeado de cores, que emolduravam no seu curso um cenário que – ao menos aos olhos da minha infância – se fazia então deslumbrante e pleno de vida. São lembranças felizes da cascata do Machado e das águas mansas e límpidas do Riacho da Tapera. Justo as duas nascentes do Rio de Contas mais próximas da minha cidade natal, Piatã.
Tempos depois, retornando à minha terra, principalmente em períodos de férias escolares, pude perceber que elas ainda mantinham sua exuberância de nascentes. Mas, com o passar dos anos, a cada retorno, eu percebia que elas, gradativamente, passaram a ser castigadas pelas mazelas da indiferença e das ações destrutivas de toda ordem. Quanto à cascata (e ao riacho) do Machado as informações que me restam são escassas. Isto porque – não sei se por mera coincidência – em um momento qualquer de arrumação pós-eleitoral, os seus visitantes se viram de repente barrados por cercas e cancelas fincadas no caminho que lhe dava acesso, por alguém que – não sei como – se fez seu dono. Tomara que ao menos ele a esteja preservando. Porque hoje a parte visível do riacho, que flui fora das cercas que o aprisionam, tem a feição apenas de mero condutor de águas usadas, de dejetos e de toda sorte de sujeiras urbanas.
No entanto, o destino da outra nascente se fez ainda mais trágico. Consta que suas águas e suas matas aos poucos foram acuadas e cercadas, capinadas e sangradas, enlameadas e secadas, para agonizar lentamente na condição de morrente, até decair ao estágio derradeiro, triste, feio e malcheiroso de esgoto urbano a céu aberto. Em síntese, a nascente do Riacho da Tapera está morta.
Morreu sem contar com o socorro dos governantes e sem qualquer chance de tratamento! Morreu como indigente sem dono que simplesmente desaparece da face da terra. Sem direito sequer ao funeral e aos discursos por conta de suas excelências o prefeito, os vereadores, os deputados e os representantes dos órgãos de proteção ambiental! Simplesmente morreu, posto que lá está qual triste figura, espichada, fétida e insepulta!
Lembrei-me então de outro falecido que também não teve aqueles mesmos direitos: o Rio do Antonio. Afluente – vejam só! – também do Rio de Contas! E que um dia teve também uma nascente. Que agonizou e morreu em condições – com poucas variantes – muitíssimo parecidas com aquelas que enumerei no início da história que ora lhes conto. Desmatamento. Fabrico de carvão vegetal para mover indústrias. Barragens eleitoreiras próximas às nascentes. Para servir a poucos e para desservir aos demais. Assoreamento. Bancos de areia escaldantes. Despejo de refugos minerais e químicos, de coliformes e de tudo que é merda ao longo do seu curso. E, da parte dos ilustres governantes – mais merda – somente inação, desprezo e omissão de socorro, do princípio ao fim.
Mas, até agora estou falando principalmente de empresários e de políticos exterminadores do futuro e de vítimas que permanecem felizes. Os primeiros, porque estão cada vez mais ricos e impunes. Os últimos por que, clientes fiéis e crédulos, longe estão de alcançar um estágio educacional que lhes assegure se libertarem para deseleger os prepostos dos primeiros e substituí-los por representantes que se façam respeitáveis.
Enfim, se queremos a salvação do nosso rio, não há sentido em que nos resignemos a só esperar o socorro da providência divina. É preciso fazer a nossa parte. Agora. No exato momento em que a Cachoeira do Patrício, a Cachoeira do Patricinho, a Cachoeira da Luz, diversas outras cachoeiras, e os demais riachos que convergem para formar a nascente do Rio de Contas estão sendo gravemente ameaçados e atacados, com risco até de morte. E a parte que nos cabe fazer no momento – com os préstimos de quem nos representa na defesa do meio ambiente e na defesa da sociedade – é só uma:
Gritar por socorro, urgente, aos ilustres representantes do Ministério Público!
Eles sabem o que fazer, porque fazer, contra quem e em favor de que e de quem devem fazer!